segunda-feira, 13 de setembro de 2010

fim de ano
Este artigo seria publicado no Il Ridotto de setembro, mas como o jornal veneziano entrou num período sabático por conta da fúria das águas de lá, achei por bem publicá-lo antes do fim do ano pois assim o blog permanece ativo...

(relembro que são artigos escritos pensando no público de lá)

ARMADILHA


O Cardeal é uma ave ornamental apreciada por criadores.
Paroaria coronata
 As relações domésticas nas diversas culturas do mundo antigo com as aves ornamentais ou canoras eram comuns. Os romanos já cuidavam ou tinham escravos encarregados de tratar aves em cativeiro. No Egito as prediletas segundo alguns hieróglifos eram os pombos e os papagaios, na Índia as Minahs (Gracula religiosa) são sagradas e falam...

As gaiolas surgiram possivelmente devido a essa admiração das pessoas pelo mistério e beleza das aves.

Seria o paradoxo do amor que acaba matando aquilo que ama, ou apenas algo fútil que violenta a natural liberdade que suscitam os seres alados?

O poder e egoísmo humanos trouxeram prisioneiro o canto dos pássaros para os salões palacianos, atrás dos muros...


Coleirinho ou coleirinha livre na natureza.
 Sporophila caerulescens
 Antes devêssemos buscar estes sons dentro da própria natureza ou no mínimo nos jardins ou fazer praças, bebedouros, plantar árvores frutíferas para atrair os cantores ou os de penas coloridas.

Aqui na Ilha de Santa Catarina o povo descendente de açorianos adora andar com uma gaiola na mão, dizem que levam o pássaro para passear, geralmente são Coleirinhas, Sabiás, Trinca-ferro ou o Curió hoje raro na natureza. Lembro-me que na rua da minha infância nos 1960 todos os visinhos tinham alguma gaiola, viveiro ou criação (alguns tinham até galinhas apesar de ser uma zona urbana). De um lado haviam os canários criados pelo Seu Bazinho, do outro lado, o sabiá do Seu Daniel Pinheiro que também cantava; na frente o Seu Abelardo tinha várias gaiolas, mas também um terreno com árvores frutíferas que vivia cheio de passarinhos e nós que também tentávamos comer uma frutinha sem ele ver e sempre fugíamos pelo campo do glorioso Avaí Futebol Clube aqui da nossa ilha.


Sabiá-laranjeira no orvalho matinal do pasto.
Turdus rufiventris

 Meu pai também teve vários pássaros canoros durante quase toda sua vida, mas o preferido dele era o Cardeal. Teve ainda uma Araponga (Procnias nudicollis) que durou apenas uma noite lá em casa, na manhã seguinte o pássaro madrugou cantando: Péim! Péimmm como um martelo na bigorna! (ele é conhecido como ferreiro http://www.youtube.com/watch?v=gj_xyF4FiEE )

Minha mãe mandou o pai presentear a araponga para o primeiro que passasse, ela não ficaria ali em casa nem mais uma noite....

Depois tivemos um viveiro no quintal, meu cunhado caçava tangarás na Mata Atlântica e os trazia em grupo para o viveiro, eles até dançavam seu bailado nupcial nos poleiros mesmo prisioneiros.


Tangará ou Capitão-do-mato Chiroxiphia caudata
Criado neste universo de aves em cativeiro a observar darem alpiste, banana, água, limpar gaiolas (e até admirando o artesanato do mecanismo dos alçapões), uma vez me deparei com uma gaiola jogada nos fundos da minha casa, era uma das que o pai não usava mais. Arrumei limpei botei ela num prego na parede e aquilo virou um brinquedo para mim, devo ter passado semanas limpando a areia e trocando o alpiste de um pássaro imaginário naquela gaiola vazia.

Mais tarde comecei perceber o objeto gaiola de outro modo, talvez mais dentro do contexto dos anos 70: como limite, como prisão.

É verdade que de lá pra cá muita coisa mudou, a meninada já quase não caça mais passarinho, existem hoje leis que impedem caçadas daquelas que o meu cunhado, seus amigos e muitos outros faziam no passado.


Canário-da-terra-verdadeiro Sicalis flaveola.
  Mas ainda existem milhares de apreciadores de aves ornamentais que se utilizam de gaiolas nas suas atividades diletantes ou comerciais. Existe até o tráfico de aves, onde nesse caso as coitadas não sabem o que é uma gaiola até chegarem (vivos) a outro país.

Depois de tanto falar de pássaros na natureza nos meses anteriores, desta vez, acabei refletindo sobre a gaiola, talvez tentando fazer uma outra leitura de uma instalação minha de 1989 chamada “Armadilha”.


Montagem da instalação Armadilha 1995.
foto Márcio H. Martins
 Essa instalação tinha como ponto central uma gaiola de criação de canários, com todas as suas várias portinhas de arame abertas, pendurada no centro entre quatro telas de pinturas azuis que a envolviam como uma caixa com duas portas abertas nas telas opostas. Dentro da gaiola um ovo de madeira branco apoiado no espaço que seria de um ninho.



Armadilha no hall do Centro Integrado de Cultura  - foto Márcio H. Martins
É uma obra que se pretende aberta, como as portas da gaiola - object trouveé - colhida na demolição de uma das casas da rua da minha infância que eu trouxe para compor esta instalação e agora relembro neste texto.

Talvez procurando as origens do Passarazzi* que hoje sou.


* Passarazzi (pássaro em portugues + papparazzo) é o nome desta minha atividade fotográfica de espiar a intimidade das aves.



Neno Brazil
Ilha de Sta. Catarina
setembro 2010